“- No outro dia vi um tipo de bicicleta a não respeitar…” Esta é uma das frases que frequentemente somos confrontados. A bicicleta em Portugal voltou a ser novidade, e como novidade que é, tem os olhos de toda a gente postos em cima dela. Qualquer desvio do padrão, torna-se num alvo a abater. A situação não é nova, pois um pouco por todo o mundo o discurso é recorrente:
Mas sinceramente, qualquer pessoa em 30 segundos a olhar para o trânsito na Av. da República em Lisboa vê várias dezenas de automobilistas em excesso de velocidade! Num dia vêem-se centenas de milhares de automobilistas a transgredir o CE por todo o país. E porque uns não respeitam, isso justifica que os ciclistas também não respeitem? Claro que não… Mas temos de colocar as coisas todas em perspectiva – qual a consequência do desrespeito do CE por parte de um automobilista, e qual a consequência do desrespeito por parte de um ciclista? Temos para nós que todos devem respeitar o Código da Estrada, ou não faria sentido termos criado o codigodaestrada.org. Esta analogia já foi feita por muita gente (como o Mikael Colville-Andersen acima citado), mas voltamos a repetir:
Anda um elefante na loja de porcelanas a partir a loiça toda, e há quem diga
que o grande problema é o ratinho que parte uma chávena.
O Relatório Nacional de Segurança Rodoviária não tem ainda dados detalhados em relação à sinistralidade envolvendo velocípedes, nomeadamente no que diz respeito à culpa nos acidentes. Há uns anos também se apontava a culpa aos peões que não respeitavam, e quando os relatórios começaram a incluir esses detalhes chegou-se à conclusão que na grande maioria dos atropelamentos a culpa não era do peão.
Este um dos maiores erros – apontar-se o dedo aos ciclistas e ao seu incumprimento e dizer que esse é um dos grandes problemas. Ilações com base na percepção pessoal e sem qualquer rigor técnico ou científico. É o “achismo” em todo o seu esplendor. Vêem no não respeitar da lei por parte dos ciclistas um problema per si, baseado da consequência que acham que pode ter, e não na real consequência que efectivamente tem.
Quando se circula de bicicleta (ou a pé), tem-se uma percepção do espaço e do que nos rodeia muito diferente de quando se circula dentro de um automóvel, que nos isola e que nos transporta em alta velocidade. Não houvesse automóveis, e toda a infra-estrutura rodoviária seria muito mais simples. Mas existem e todo o meio reodoviário foi desenhado tendo o automóvel no centro – resultado é um espaço comum que responde mal às necessidades de quem anda a pé ou de bicicleta – e por isso as pessoas não cumprem. Desenhassem o mesmo espaço com interrupções, desvios e tempos de espera tão absurdos para os automobilistas, como os que são impostos aos utilizadores vulneráveis, e não temos a menor dúvida de que o incumprimento por parte dos primeiros seria ainda maior.
A grande maioria dos relatos que nos chegam, são de acidentes em que os ciclistas são simplesmente abalroados violentamente, sem qualquer culpa… haverá casos em que sim, a culpa estará de quem conduz a bicicleta – mas quantos? Quantas mortes ocorrem por culpa dos ciclistas? Quantos acidentes graves? Quantos feridos?
2 meses e meio depois da entrada em vigor da nova redação do CE, ao contrário do que foi previsto por muitos (e apesar de ainda não termos dados concretos), parece-nos que a sinistralidade envolvendo ciclistas não disparou loucamente. Aliás, os dados provisórios de 2014, já apontam para uma redução do nº de mortes na globalidade – será resultado das alterações?
Se continuamos a tentar resolver problemas menores, procurando soluções à pressa e sem sentido, corremos o risco não só de não sermos eficazes como de prejudicarmos gravemente a promoção da bicicleta como meio de transporte. E é sabido pelas experiências internacionais, que o aumento do número de bicicletas melhora a segurança rodoviária no geral. Temos não só de nos “focar na bola”, mas também para onde ela vai…
Urge que se faça um estudo exaustivo por parte das entidades competentes na matéria, sobre a sinistralidade envolvendo velocípedes, para que antes de se apontar as armas ao que julgamos ser o grande problema, se identifique qual é realmente esse problema. Sob risco de estarmos a pegar no mata moscas para nos livrarmos do mosquito, quanto temos o leão atrás de nós pronto para nos atacar.
Miguel Barroso
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